quinta-feira, 3 de março de 2005

O espelho de mim mesmo

«Saberiam os aspirantes a escritores
que não alcançar o que queremos é,
no melhor dos casos, o nosso amargo triunfo

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"Sempre vivi rodeado de fantasmas numa casa antiga
que era como que o espectro de si mesma,
desde o portão flanqueado por ananases de pedra
à mala dos ossos de Anatomia, que a aguardava,
arrecadada, a minha vez de a estudar,
num perfume doce do incenso e de gangrena."

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"Lembra-se da PIDE em África, meu capitão,
dos quarteizinhos deles, parecidos com bunkers,
encostados às sanzalas, dos agentes deles que vinham
às vezes à messe, de arma à cintura, tomar café connosco?"

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A avó que amara muito e cuja recordação o enternecia ainda:
quando se achava mais em baixo ia a sua casa,
entrava na sala, informava sem vergonha: - Venho aqui para me fazer festas.
E pousava-lhe a cabeça no colo para que os dedos dela,
ao tocarem-lhe na nuca, lhe apaziguassem as raivas
sem motivo e o desejo sôfrego de ternura"

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"E em cima do cavalo havia eu a passo, a trote
e a galope com o meu avô a gritar
- Endireita-te
a gritar desgostoso
- Não sejas maricas endireita-te"

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«Eu hei de amar uma pedra»

António Lobo Antunes